É PERMITIDO ENGANAR UM POVO?

POR EMMANUEL NAKAMURA*
A essa pergunta Hegel tinha uma resposta paradoxal: «um povo não se deixa enganar acerca da sua base substancial, da essência e do caráter determinado do seu espirito, mas que ele é enganado por si mesmo acerca do modo como ele sabe desse espírito e como julga as suas ações, os acontecimentos etc. segundo esse modo.»[1] Aceitar essa resposta de Hegel significa ter como ponto de partida indivíduos livres e emancipados e que não precisam e nem aceitam nenhum tipo de tutela: um povo não se deixa enganar, ele engana a si mesmo. Logo as instituições sociais e políticas são um resultado de suas próprias ações e da maneira como as julga.
Hoje em dia, o cidadão médio brasileiro tem como bandeira libertar o Brasil da corrupção. Ele não tem nenhum interesse concreto, apenas uma ideia puramente abstrata de justiça vingativa que é uma segunda lesão ao direito. Se os políticos lesam o direito através de práticas corruptas, a justiça vingativa da classe média justiceira é uma segunda lesão ao direito. Assim como os políticos corruptos, ela está aquém de qualquer representação moral que exigisse uma justiça legal. Como se trata de uma ideia abstrata de justiça vingativa, ela é uma abstração de qualquer interesse particular concreto. Logo, a classe média vingativa se volta com violência contra qualquer opinião contrária, solapando um dos pilares do Estado de direito: a liberdade de opinião.[2]
Afirmar que o povo brasileiro construiu um Estado de direito seria, no entanto, uma opinião muito generosa. Temos um «Estado Oligárquico de direito».[3] Foi o que conseguimos construir depois da abertura democrática e não devemos nos envergonhar tanto disso, pois se tratava de uma limitação da consciência da liberdade que diz respeito à história mundial. As ditaduras do capital foram todas patrocinadas pelos EUA; assim como as ditaduras do proletariado, pela antiga URSS. Tratava-se de uma disputa pelo poder entre dois blocos geopolíticos que deixou feridas que vão demorar a cicatrizar: os países dos leste-europeu estão longe de serem Estados democráticos de direito e os conflitos no oriente médio resultam em grande parte de ditaduras financiadas anteriormente pelos dois blocos. No Brasil não poderia ser diferente. A ditadura militar nos legou fundamentalmente dois pensamentos: a ideologia anticomunista e a crença no crescimento econômico. Este último é uma visão rebaixada da teoria desenvolvimentista que buscava superar a miséria social brasileira.
A esquerda, no entanto, sempre acreditou que poderia ser diferente, afinal o PT surgiu junto com a abertura democrática. E, de fato, poderia ser, caso o PT tivesse conseguido representar politicamente os interesses sociais que potencialmente deveriam se auto-diferenciar com a desmilitarização do controle social. Mas, para isso, o PT teria que representar os diversos setores da sociedade que durante a ditadura não tiveram representação política. E ele só poderia fazer isso através do poder legislativo, pois não temos até agora outra forma política para isso. O legislativo é espaço institucional onde os conflitos sociais podem adquirir uma forma política. Durante a ditadura eles foram reprimidos militarmente. Sindicatos, movimentos sociais e qualquer outro setor social só podem organizar os seus próprios interesses autonomamente quando estão livres de qualquer controle estatal, interesse governamental ou interesses políticos da sociedade como um todo. A representação parlamentar é a única forma que permite essa separação. – Uma democracia direta, p. ex., contaminaria o desenvolvimento de interesses de grupos sociais com o debate político e a administração do todo. – Quem ocupou o poder legislativo foi, no entanto, o PMDB: «Estamos aqui há 50 anos. Temos raízes. Somos o partido que derrubou a ditadura sem matar ninguém, só com a política.»[4] Neste sentido, a análise de Marcos Nobre está correta: «a verdadeira força política hegemônica da política brasileira é o pemedebismo.»[5]
O PMDB foi quem controlou o processo de democratização e conseguiu fazer isso democraticamente, porque os dois partidos políticos que surgiram com a abertura democrática – PT e PSDB – deram pouca importância para o poder legislativo. Por isso a sociedade brasileira não conseguiu desenvolver novos interesses sociais e muito menos dar uma voz política a estes. Para o brasileiro ficar contente basta uma coisa: o crescimento econômico. PT e PSDB se contentaram então apenas em lançar candidatos «gerentes do condomínio político pemedebista brasileiro.»[6] A representação pemedebista tem, portanto, um enraizamento profundo. O PMDB representa uma sociedade que mal sabe formular os seus interesses, porque no passado sempre foi calada por meio da violência e depois não nunca teve meios políticos para formular livremente os seus interesses. Por isso, o melhor exemplar do que é o cidadão médio brasileiro é o «Macho PMDB», o «pior tipo de homem de todos os tempo» ou «o pior dos moralistas».[7] Não é a toa que a classe média justiceira só sabe bater em panelas. Ela simplesmente não sabe o que quer. Ou melhor, ela sabe: tudo que ela quer é que o país volte a crescer economicamente. Por isso, o discurso aparentemente moral-anticorrupção é pura dissimulação. Pouco importa que quem julgue o impeachment sejam deputados envolvidos no esquema de corrupção da Petrobrás. O importante é derrubar uma presidente que não consegue fazer a economia voltar a crescer. Prova disso foi o escândalo do mensalão. Lula foi reeleito, porque o que importava mesmo era que a economia estava crescendo.
O PT conseguiu gerir o condomínio pemedebista, porque herdou do PSDB uma situação de estabilidade monetária, em um momento de melhora na conjuntura econômica internacional, mas, principalmente, porque era a consciência social da abertura democrática. Logo, a sociedade brasileira, como um todo, depositava no governo petista todos os anseios de conquista de liberdades pessoais, sociais e políticas. O governo Lula, no entanto, canalizou essa força social para reanimar a crença no crescimento econômico. – Ao chegar ao governo, o PT manifestou também uma limitação da política latino-americana que diz respeito ao longo histórico de repressão social no continente. Como interesses sociais nunca puderam se desenvolver livremente, os diversos agrupamentos sociais, assim como a classe média, nunca conseguiram formular o que queriam. Diante de uma política que a afetava, mas que ela nunca conseguiu participar, restou à esquerda um sentimento em comum de miséria social e uma aspiração à soberania popular, traduzida no Brasil em «Lula lá». Lula é a imagem sensível desse sentimento popular. Ele é a representação sensível das liberdades sociais que os setores de esquerda queriam conquistar: «É por preconceito, proclamou, que os ricos não toleram que desfrute de um sítio no fim de semana. ‹Todo mundo pode, menos essa merda desse metalúrgico›, disse. A execração é de classe: ‹Eles partem do pressuposto que pobre nasceu para comer em cocho. Eu aprendi que não, quero comer comida boa›.»[8] Mas isso mostra que os países latino-americanos nunca conseguiram pensar as liberdades pessoais, sociais e políticas como pertencentes ao homem como tal – i.e. ela sempre precisou projeta-las exteriormente numa pessoa absoluta, e não em direitos sociais, constitucionalmente garantidos. Daí porque a força social do processo de democratização brasileiro se transformou em «lulismo»[9]. – Talvez isso ocorra porque desconhecemos o princípio da liberdade subjetiva, que segundo Hegel o protestantismo trouxe ao mundo.[10] Ao trazer Deus para o coração do homem, Lutero mostrou que, através de Cristo, Deus se mostrou como um de nós e, logo, nos elevou à mais suprema liberdade. Com isso, ele livrou o cristianismo da carência de abstração que projetava as liberdades subjetivas em uma autoridade exterior ou em um objeto sensível. Mas o Brasil é fundamentalmente um país católico e continua apegado a uma autoridade exterior. Mesmo as novas comunidades evangélicas estão muito longe da doutrina de Lutero, pois projetam as liberdades numa unidade comunitária na qual as liberdades subjetivas são distorcidas por um pastor malformado.
A polarização política atual mostra como pouco conseguimos nos distanciar do período militar. Não é a toa que aqueles que são pró-impeachment só sabem repetir a ideologia anticomunista do período ditatorial. O «vai pra Cuba», na boca do cidadão médio brasileiro, reproduz uma visão distorcida de Cuba do período da guerra fria, como um país com muita miséria social, políticos corruptos e ausência de liberdade de expressão. A ironia é que é exatamente aqueles que gritam «vai pra Cuba» que estão retransformando o Brasil nesta representação distorcida de Cuba, pois, ao querer reintroduzir a ideologia anticomunista para dentro do Estado, eles se mostram a favor do controle de liberdade expressão e que a relação entre cidadão e Estado seja baseada na desconfiança. Do outro lado, os que são contra-impeachment afirmam que se trata de um golpe. Há desse lado um pouco mais de razão, pois, ao se voltarem contra a manipulação política de instituições jurídicas pelo PMDB e PSDB, eles reivindicam que nenhum partido deve estar acima da constituição. Ambos os lados querem, no entanto, apenas que o país volte a crescer economicamente. O empresariado é pró-impeachment porque sabe o PMDB não vai deixar o governo em paz e quer resolver logo a situação. A classe média justiceira finge acreditar que a crise política é apenas o resultado da «má condução do estado pelo lulo-petismo», i.e. de um governo que formou «quadrilhas para assegurar o poder com a aquiescência de empresários e partidos.»[11] No fundo ela quer também apenas a volta do crescimento econômico, pois não dá a mínima (1) para a manipulação política das instituições jurídicas, (2) para o fato de que os parlamentares que julgarão o impeachment estão tão ou mais envolvidos no esquema de corrupção da Petrobras e (3) em entregar o poder executivo ao PMDB, que sempre comandou o poder legislativo como sendo o seu condomínio. Já os que são contra-impeachment criticam a política econômica do governo Dilma e os petistas, em particular, apostam na única solução que encontraram desde o fim da ditadura militar: «Lula lá». A imprensa, que pouco se distanciou da ditadura militar, pede a renúncia da presidente, reconhece que não há base legal para o impeachment e por isso pede um sacrifício da presidente para salvar a constituição.[12] Finge esquecer que uma constituição livre e democrática não precisa do sacrifício de ninguém.
O que vem à superfície com o escândalo da Petrobras é, no entanto, a limitação de nossa representação democrática, que só representa interesses econômicos por meio de corrupção. A atual crise política não parece apresentar opções para resolver esse problema porque o povo quer apenas a volta do crescimento econômico. A classe média justiceira finge acreditar que a corrupção acabará com o impeachment, deixando o poder executivo e legislativo sob controle do PMDB. Já a esquerda projeta uma situação catastrófica, e há um pouco de razão isso, pois o país caminha no sentido de refortalecer a força política do PMDB e as ideologias da ditadura militar: o anticomunismo e a cresça no crescimento econômico. Se antes os movimentos sociais eram mal representados pelo PT, agora eles caminham para o «grau zero da representação»[13]. A esquerda autônoma aposta na organização autônoma dos movimentos sociais.[14] Na verdade, é o que sobrará, mas convém alertá-la que dificilmente ela conseguirá conquistar algum direito social. Poderá, no máximo, resistir – p. ex. impedir que escolas com professores mal-pagos e com estrutura precária sejam fechadas ou impedir que tarifas de transporte público precário se tornem mais caras, isto é, ela poderá no máximo impedir uma precarização ainda maior dos serviços públicos, deixados sob administração do PMDB e do PSDB. Quem procura não tomar partido pró ou contra impeachment recorre a uma conduta mais própria a animais do que a seres humanos: «Fazer sem acreditar»[15]. Só podemos agir moralmente se acreditamos em alguma ordem moral do mundo. – Tal descrença foi, entretanto, formulada muito antes pelo pensamento crítico brasileiro, que em sua última análise do país viu uma espécie fim da história, própria às leituras equivocadas da filosofia da história de Hegel. Se a tradição crítica chegava ao fim, significava que as suas categorias perdiam poder para explicar o Brasil, mas isso não deveria impor nenhum determinismo histórico, no sentido de que estaríamos formados e somos esse bicho estranho chamado ornitorrinco.[16] O que chegava ao fim era a crença desenvolvimentista de superação do subdesenvolvimento através de um projeto nacional elaborado por intelectuais atuantes no poder executivo.
Quem faz necessariamente crê que o país pode ser algo diferente dessa formação social-política estranha e corrupta que o período militar nos legou. Quem aposta em movimentos sociais autônomos, p. ex., acredita na possibilidade de conquistar liberdades sociais. O conteúdo da crença é, portanto, a liberdade social. Quem defende hoje o fim das eleições obrigatórias acredita que a liberdade política não deve apenas aclamar um poder corrupto, mas deve ser a manifestação da vontade livre de cidadãos emancipados. O conteúdo dessa crença é, portanto, a liberdade política. Quem defende o fim do financiamento privado de campanha, acredita que a representação política deve representar todos os interesses de todos os setores da sociedade, e não apenas os econômicos. O conteúdo dessa crença é a liberdade ética-comunitária. Quem defende o voto em legenda, acredita os partidos políticos devem representar ideias e interesses sociais específicos. O conteúdo da crença é a liberdade concreta formada por formas de vida particulares e não uma liberdade abstrata como soma indivíduos atomizados. Quem defende a imprensa livre é porque acredita que os indivíduos emancipados sabem diferenciar e imprensa livre da manipuladora. O conteúdo dessa crença é a liberdade de expressão. Quem defende a criação de novos partidos políticos acredita que o país precisa de novos atores políticos que reconheçam a separação entre as esferas privada, social e política. O conteúdo dessa crença é a separação moderna entre liberdades pessoais, sociais e políticas. Em todas essas crenças, o conteúdo comum é a liberdade. Só teremos uma país melhor quando fizermos da liberdade o conteúdo do nosso querer. Não precisamos de um novo projeto nacional-desenvolvimentista, nem de uma nova forma abrangente de fazer política a ser pregada por intelectuais em todos os setores da sociedade e nem muito menos de uma nova força social tal como foi o PT no começo da abertura democrática. Dar existência a liberdades sociais significa transformá-las em direitos sociais. Mas para isso precisamos urgentemente parar nos auto-enganar e colocar em pauta uma reforma política e criar novos partidos políticos, capazes de representar os mais diversos setores sociais no poder legislativo.
*Emmanuel Nakamura é doutorando em Filosofia na Universidade de Berlim.
[1] HEGEL, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse. GW 14,1. Hamburg: Felix Meiner: 2009, § 317. (Tradução de Marcos Lutz Müller).
[2] Cf. BOULOS, G. Quem está incendiando o Brasil? In: FOLHA DE SP. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/guilhermeboulos/2016/04/1756647-quem-esta-incendiando-o-brasil.shtml. Acesso em 04/04/2016.
[3] Cf. SAFATLE, V. O Estado Oligárquico de Direito. In: FOLHA DE SP. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2015/12/1717437-o-estado-oligarquico-de-direito.shtml. Acesso em 04/04/2016.
[4] FRANCO, M. Ex-ministro Moreira Franco diz que gestão petista ‹não confia em ninguém›. In: FOLHA DE SP. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/09/1684133-ex-ministro-moreira-franco-diz-que-gestao-petista-nao-confia-em-ninguem.shtml. Acesso em 04/04/2016.
[5] NOBRE, M. O Fim da polarização. In: REVISTA PIAUÍ, edição 51, dezembro de 2010. Disponível em: http://revistapiaui.estadao.com.br/materia/o-fim-da-polarizacao/. Acesso em 04/04/2016.
[6] NOBRE. O Fim da polarização, op. cit.
[7] SÁ, X. O pior tipo de homem de todos os tempos. In: EL PAÍS. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/24/opinion/1429875361_407271.html. Acesso em: 04/04/2016.
[8] CONTI, M. S. Falta certeza e sobra ódio. In: FOLHA DE SP. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2016/03/1747392-falta-certeza-e-sobra-odio.shtml. Acesso em 05/04/2016.
[9] SINGER, A. Sonho suspenso. In: FOLHA DE SP. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/219384-sonho-suspenso.shtml. Acesso em 05/04/2016.
[10] HEGEL, G. W. F. Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830). GW 20. Hamburg: Felix Meiner, 1992, § 482.
[11] CARDOSO, F. H. A constituição é o caminho. In: EL PAÍS. Disponível: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/03/opinion/1459687432_855868.html. Acesso em 05/04/2016.
[12] FOLHA DE SP. Nem Dilma nem Temer. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/04/1756924-nem-dilma-nem-temer.shtml. Acesso em 05/04/2016.
[13] SAFATLE, V. Deixe os mortos enterrarem seus mortos. In: FOLHA DE SP. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2015/08/1665348-deixe-os-mortos-enterrarem-seus-mortos.shtml. Acesso em 05/04/2016.
[14] BRUM, E. Acima dos muros. In: EL PAÍS. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/28/opinion/1459169340_306339.html. Acesso em: 05/04/2016.
[15] BRUM, E. Em defesa da desesperança. In: EL PAÍS. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/21/opinion/1450710896_273452.html. Acesso em 05/04/2016.
[16] Cf. OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista – O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003.

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